Crônicas, pensamentos e reflexões.

Arquivo para maio, 2024

Caro Zaratustra

“Grande astro! Qual seria sua felicidade sem aqueles a quem iluminas?” (ZARATUSTRA, 1883, p. 42).

Assim, pressupondo uma consciência do Sol e, intencionalidade, por consequência, não se descarta a possibilidade de ele simplesmente ser o que é, independente daqueles que se beneficiam da sua luz. Ora, ser o que é, e ainda iluminar a outros, pode ser uma razão legítima para a felicidade, porém, não condição para existir em sua essência. Entretanto, para legitimar ou presumir a razão de sua felicidade, uma vez já admitindo que ele seria capaz de sentir, isso só é possível através da humanização do Sol a partir da projeção da própria personalidade. Pois, se retirar, aqueles que se beneficiam e têm consciência disso, ou ainda; se considerar os que desfrutam, mas não têm conhecimento sobre tal fato e ainda assim necessitam de suas beneficies, não há possibilidade de sugerir percepção e, quem dirá, presumir a felicidade do Sol por parte dos beneficiados. Logo, para evidenciar a felicidade do Sol nestes casos, seria necessário admitir que esta não dependeria da percepção ou reconhecimento dos iluminados, sendo assim, intrínseca a ele. Mas como validar tal hipótese da felicidade do Sol sem que haja consciência para isto? E, ainda que se considere sua felicidade pelos seus beneficiados, sem reconhecimento algum por parte desses, estaria a consciência e felicidade no próprio Sol ainda que não houvesse quem pudesse testemunhá-la? Então, Zaratustra: quem é o Sol? E quem é você?  

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Sobre escrever

Às vezes uma ideia vem como um miado; outras vezes, como um grito. Há aqueles dias em que ela chega com um porrete e dá na minha cabeça.

Já houve várias noites em que eu tive que levantar e procurar uma caneta para rabiscar algo (hoje em dia o celular facilitou esse processo) e, embora muitas dessas anotações foram parar no lixo, outras renderam crônicas.

Geralmente não me privo na hora escrever por mais que, no início, a ideia pareça absurda. Depois, de certa forma, ela se desenvolve e consigo juntar as partes separadas por vários “TABs” em algo que faça algum sentido.

É, não escrevo de forma linear, pois, enquanto escrevo um parágrafo, uma conclusão pode me saltar a mente e tenho que escrevê-la em outra parte da página antes que ela se perca no limbo.

Críticas, anseios, sublimações, teorias ou até diálogos com um leitor imaginário – como neste exato momento – são válidos. Certa vez, vi uma folha seca sobre a cama e escrevi o texto “Sobre os talentos”. Ou seja, não há um critério preestabelecido. Talvez isso expresse a liberdade, uma forma de transformar minhas próprias sombras em personagens e debater com elas. O autoconhecimento quando eu termino de escrever e, após reler, me escapar um “Eu escrevi isso?”  É como se trouxesse algo de um mergulho profundo no inconsciente à luz da razão.

De qualquer forma, a música sempre me acompanha nessa jornada. Mozart poderia receber boa parte dos meus direitos autorais se esses tivessem algum valor real – o que significa sutilmente, que dinheiro não é a razão que me faz escrever desde a adolescência, até porque ele não existe. E talvez esteja aí o segredo de se fazer algo que ama: é o prazer na própria jornada, independente do fim, sempre que possível.

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O rio

O medo vinha como sombras, com suas formas distorcidas e sem nenhuma chance de saber o que havia entre a fogueira e a parede¹.  O silêncio das vozes caladas quebrado pelos soluços dos condenados por aqueles que sempre têm razão. Oprimido e opressor compondo uma sinfonia de caos, angústia e virtude, mas que, de alguma forma, parecia calma para aqueles que se libertaram de suas amarras e, as margens, só viam o rio passar, calmamente.

Ah, virtude! Como é fácil te confundir com vaidade! Jaz nas almas daqueles a quem segrega, um fundo de respeito e admiração, mas, nas linhas da história da vida, todos saberão quem, de fato, foram: sombras na parede.

Os justos choram e suas lágrimas regam o solo de onde brotará a árvore que, de seus frutos, muitos se alimentarão, pois, da indignação dos justos, muitos se saciarão. E quanto a isso, soberba, não há o que possa fazer; só os verdadeiros nobres derramam lágrimas pelo que é justo, e só essas podem preparar o solo fértil, ao contrário de ti, que quando chora é por raiva ou inveja. Do seu solo só virá lama e decepção.

Seja forte, virtuoso! Pois o grito do coração de uma pessoa virtuosa ecoa no mundo e, sob toda injustiça, há de nascer a esperança.

Longe das amarras o rio continua. De lá é possível ouvir a sinfonia, assim como ver o maestro, a plateia e os músicos.

¹ Referência a Alegoria da Caverna de Platão.

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